domingo, 17 de março de 2013

O Diálogo

   - Mas porquê escritor?
   - Porque escrever é fácil. Basta pôr o coração em cima da mesa e escrever até ele sangrar. Claro que às vezes é difícil tirá-lo do corpo ou fazê-lo parar de sangrar, mas esta é a ideia base. Escrever até a alma doer, até furar o espaço que existe entre eu e tu, até as excrescências da mente se amplificarem, até sentir cólera, arroubo ou pundonor, até observar um ósculo entre a vida e a morte através de notas musicais dispostas num atril e regidas por um senhor de batuta na mão. Escrever para tudo e para todos mas, principalmente, para nós. Colocar os mais reles pensamentos numa folha de papel, conspurcá-los e amarfanhá-los das ousadias mais sujas, e no fim sentir amargor, porém, uma frugal e inócua alegria. Descrever a escrita é descrever tudo e descrever nada. Por isso vou agora descrever a parte do nada - e calou-se o escritor.
   - Ganha muito dinheiro? - perguntou o rapaz, ainda confuso com o discurso que acabara de ouvir; tentava arranjar uma maneira de decifrar todas aquelas palavras, algumas ouvidas pela primeira vez.
   O escritor riu-se.
   - Não, quase nada. Bem, pelo menos não agora. Antes ganhava algum dinheiro - e ditas as palavras acendeu um cachimbo straight billiard que guardava numa gaveta, por baixo de uma das estantes de livros.
   - Porque é que já não ganha tanto?
   - É simples: a vida acontece e as pessoas deixam-se de interessar - deu outra passa e expirou para a parede alvacenta à esquerda, agora negra como as trevas pois há muito que o sol se tinha posto.
   - E não se importa? - inquiriu o catraio, visivelmente indignado.
   - Sou um pobre velho, já poucas coisas me importam. E o dinheiro não é uma delas. Chega uma altura em que reparamos que o que traz felicidade não é o que está à nossa frente, mas sim ao nosso lado, à nossa volta e por cima de nós. Claro que quando era jovem o meu grau de alacridade variava consoante um gráfico de valores numéricos. Quando os valores eram elevados, o meu grau de alegria estava no topo. Quando os valores eram baixos, o meu grau de alegria estava mais abaixo que a fossa das marianas. Ficava deprimido, até. Mas tudo muda e nós também sofremos alterações, de foro físico e psíquico.
   O rapaz ficou a olhar para o fumo que saía do cachimbo do escritor. Como é que aquilo saía daquela maneira? Algumas partículas até ganhavam formas! Viu uma argola que saíra daquele cigarro estranho e a imagem dos anéis de Saturno veio-lhe à memória; tinha-os vistos num livro horas antes. Levantou-se e voltou para a sala. O escritor continuou a aspirar a fumaça e a olhar para a janela.
 

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